20.2.09

Proibições, riscos, danos e enganos

Essa não é a primeira vez que posto texto de autoria dessa admirável e corajosa juíza...

Maria Lucia Karam
Palestra realizada na Terceira Reunião Preparatória sobre a Posição da Sociedade Civil Brasileira frente à Política Mundial de Drogas, promovida pela Psicotropicus-Centro Brasileiro de Políticas de Drogas e ABIA-Associação Brasileira Interdisciplinar sobre AIDS, em 12 de fevereiro de 2009, no Rio de Janeiro.

“Não são as drogas que causam violência. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. Só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal.”A proposta de refletir sobre aspectos legais e de segurança relacionados às drogas, como subsídio para discussões visando um posicionamento sobre questões relativas à saúde, especificamente HIV/AIDS, redução de danos e direitos humanos, decerto deve partir da constatação dos riscos e danos causados pelo proibicionismo criminalizador das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Essas reflexões decerto devem conduzir a um claro repúdio às autoritárias convenções da ONU e às leis internas sobre essa matéria e a um claro posicionamento reivindicador da legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as substâncias psicoativas.
O proibicionismo contra as drogas explicitamente elegeu a guerra como paradigma do controle social exercido através da sempre violenta, danosa e dolorosa atuação do sistema penal, fornecendo o primeiro impulso para a expansão do poder punitivo, que se faz notar globalmente desde as últimas décadas do século XX.
A expressão “guerra às drogas”, criada nos anos 70, é bastante eloqüente. Naturalmente, não se trata aqui de uma guerra dirigida propriamente contra as drogas. Como todas as guerras, essa é uma guerra contra pessoas – os produtores, os comerciantes e os consumidores daquelas demonizadas substâncias.
Com o passar do tempo, o poder punitivo foi diversificando suas “guerras” e seus “inimigos”. Hoje, praticamente todos os variados adeptos do poder punitivo elegem cada um seu “inimigo” particular, conforme suas próprias e variadas tendências políticas. Alguns usam o pretexto do “terrorismo”, ou de uma nunca definida “criminalidade organizada”; outros falam de um suposto crescimento incontrolável da mais tradicional “criminalidade de rua”, ou seja, as condutas criminalizadas dos pobres; outros, ao contrário, acenam para a criminalidade política e econômica, a criminalidade dos poderosos.
Mas, a diversificação não abre mão da invariável e uniformizadora força ideológica da “guerra às drogas”. Ao contrário, a dita necessidade de “combater” as drogas tornadas ilícitas permanece sendo uma das principais fontes da contínua expansão do poder punitivo. A produção, o comércio e o consumo daquelas substâncias proibidas são freqüentemente associados àqueles outros fenômenos (reais ou imaginários), como um pretexto a mais para a introdução de leis emergenciais ou de exceção, fundadas no novo paradigma do “direito penal do inimigo”.
As condenações fundadas nas leis criminalizadoras das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas são a principal causa do superpovoamento das prisões em todo o mundo.
As convenções da ONU e as leis internas em matéria de drogas inauguraram a série de provimentos – apresentados como emergenciais, mas que vão se tornando perenes – que impõem medidas penais e processuais excepcionais, promovendo uma sistemática violação a princípios garantidores inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, sob a enganosa alegação de uma suposta impossibilidade de controlar determinadas condutas criminalizadas com o emprego de meios regulares.
Desprezando as idéias que construíram a proteção aos direitos fundamentais e enfraquecendo o modelo do Estado de direito democrático, provimentos como os que caracterizam as autoritárias convenções da ONU e leis internas em matéria de drogas sistematicamente violam o princípio da exigência de lesividade da conduta proibida, o postulado da proporcionalidade, o princípio da isonomia, o princípio da individualização da pena, a garantia da vedação de dupla punição pelo mesmo fato, a garantia do estado de inocência, a garantia do contraditório, a garantia do direito a não se auto-incriminar, a própria cláusula do devido processo legal, o direito à liberdade e à vida privada, o próprio princípio da legalidade.
Todas essas violações – encontradas em dispositivos que, criminalizando o dito “tráfico” das drogas tornadas ilícitas, exacerbam de forma desmedida o rigor penal, e nos dispositivos que, mantendo a criminalização da posse para uso pessoal daquelas substâncias proibidas, desrespeitam a liberdade individual – já demonstram que os maiores riscos e danos relacionados a drogas não são causados por elas mesmas. Os maiores riscos e danos são causados sim pelo proibicionismo. Em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo e negando direitos fundamentais, acaba por perigosamente aproximar democracias de Estados totalitários.
Esses riscos e danos à democracia naturalmente já deveriam ser razão suficiente para um claro repúdio ao proibicionismo. Mas, há mais.Dentre tantos paradoxos da proibição, está a alegação que pretende fundar a criminalização das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas em uma suposta tutela do bem jurídico relacionado à incolumidade ou à saúde públicas.
Além do fato de que o sistema penal não serve para tutelar nenhum bem jurídico – a expressão “tutela penal’, tradicionalmente utilizada, é manifestamente imprópria; na realidade, as leis penais nada protegem, não evitando a realização de condutas que, por elas criminalizadas, são etiquetadas de crimes, mas servindo tão somente para exercitar o enganoso, danoso e doloroso poder punitivo –, no âmbito da criminalização das ações relacionadas às drogas tornadas ilícitas, o engano é ainda maior: mais do que não proteger a incolumidade ou a saúde pública, a criminalização causa danos e perigo de danos a essas mesmas incolumidade ou saúde públicas que anuncia pretender proteger.
Dentre outras coisas, bastaria pensar que a clandestinidade, imposta pela proibição, implica na falta de controle de qualidade das substâncias tornadas ilícitas e consequentemente no aumento das possibilidades de adulteração, de impureza e desconhecimento do potencial tóxico ou entorpecente daquilo que se consome.
Aqui, já se pode entrever outro paradoxo do proibicionismo: quando não acenam com a delirante – e, na realidade, indesejável – pretensão de construir um mundo sem drogas, os proibicionistas se valem do pretexto mais modesto de controlar sua difusão. Mas, a intervenção do sistema penal implica exatamente na falta de qualquer controle sobre o mercado das drogas tornadas ilícitas, que é entregue a criminalizados atores que devem agir na clandestinidade e que, conseqüentemente, não estão submetidos a qualquer regulamentação de suas atividades econômicas.
Além de ameaçar a democracia, além de causar riscos e danos à saúde, o proibicionismo causa violência.
Não são as drogas que causam violência. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. Só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal. É a ilegalidade que cria e insere no mercado empresas criminalizadas (mais ou menos organizadas), que se valem de armas não apenas para enfrentar a repressão; as armas se fazem necessárias também em razão da ausência de regulamentação e da conseqüente impossibilidade de acesso aos meios legais, a violência se tornando o meio necessário para a resolução dos naturais conflitos gerados no âmbito daquelas atividades econômicas.
Mas, a violência não provém apenas dos enfrentamentos com as forças policiais, da impossibilidade de resolução legal dos conflitos, ou do estímulo à circulação de armas.
A diferenciação, o estigma, a demonização, a hostilidade, a exclusão, derivados da própria idéia de crime, sempre geram violência, seja da parte de agentes policiais, seja da parte daqueles a quem é atribuído o papel do “criminoso”, ainda mais quando o poder punitivo se agiganta e se inspira no paradigma da guerra e os autores de crimes recebem não apenas a marca do “outro”, do “mau”, do “perigoso”, mas são apontados como o “inimigo”.
No Brasil, os “inimigos” são personificados especialmente nos vendedores de drogas que vivem nos guetos denominados favelas, demonizados como os “traficantes” ou os “narcotraficantes” (mesmo que não vendam narcóticos, pois vendem especialmente cocaína…).As polícias brasileiras são autorizadas (formal ou informalmente) e mesmo estimuladas a praticar a violência, a tortura, o extermínio, contra eles ou contra quem a eles se assemelhe. Certamente, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Como se espantar quando os policiais brasileiros torturam e matam?
Por outro lado, os ditos “inimigos” desempenham esse único papel que lhes foi reservado. Em sua maioria, são meninos que empunham metralhadoras ou fuzis como se fossem o brinquedo que não têm ou não tiveram em sua infância. Sem esperanças de uma vida melhor, matam e morrem, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares, enfrentam os delatores, enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Reconhecidos apenas como os “narcotraficantes”, os “maus”, os “monstros”, os “inimigos”, por uma sociedade que não os vê como pessoas, como se espantar com sua violência ou sua crueldade? Se seus direitos lhes são negados, por que deveriam respeitar os direitos alheios?
Não se pode pensar no paradigma de redução de riscos e danos apenas em um sentido que o vincula unicamente a questões concernentes à saúde. Aliás, o desenvolvimento de programas terapêuticos de redução dos riscos e danos relacionados às drogas tornadas ilícitas no interior de um ordenamento proibicionista, que maximiza esses riscos e danos, torna-se algo irracional e insustentável, ou, na melhor das hipóteses, uma política que se satisfaz com o enfrentamento apenas de alguns riscos e danos menos graves, deixando de lado os riscos e danos mais graves, inclusive os diretamente relacionados e agravantes dos mais limitados riscos e danos enfrentados.
Não se pode parcial e egoisticamente defender apenas os direitos de consumidores de drogas e ignorar ou até mesmo compactuar com as gravíssimas violações de direitos das maiores vítimas da “guerra às drogas” – no Brasil, os muitos meninos que negociam e trabalham no árduo mercado tornado ilegal.
Não se pode parcial e maniqueistamente defender apenas a legalização de uma ou outra droga apresentada como “boa” ou “inofensiva”, como fazem defensores da maconha ou da folha de coca, que, reproduzindo a mesma artificial distinção que sustenta a nociva divisão das drogas em lícitas e ilícitas, pretendem se apresentar como os “bons”, se diferenciando dos “maus” produtores, comerciantes e consumidores de drogas ditas “pesadas”.
Não se pode pretender reduzir riscos e danos relacionados às drogas e não se incomodar com a nocividade do proibicionismo, como o fazem aqueles que, no Brasil, não hesitam em participar de órgãos oficiais e trabalhar sob o comando dos generais encarregados da versão doméstica da “guerra às drogas”.
É preciso sim reviver o desejo da liberdade, o desejo da democracia, a idéia da dignidade e do igual respeito que há de ser garantido a todas as pessoas, a supremacia dos princípios garantidores inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas.
A redução dos riscos e danos relacionados às drogas ilícitas exige, antes de tudo, uma vigorosa reafirmação dos direitos fundamentais de todas as pessoas e um atento olhar para os limites que hão de ser postos ao exercício dos poderes estatais em um Estado de direito democrático e, especialmente, para os indispensáveis freios que hão de ser postos ao exercício do mais violento, danoso e doloroso desses poderes – o poder punitivo.
A construção de marcos legais favorecedores da redução dos riscos e danos relacionados às drogas exige, antes de tudo, uma ampla reforma das convenções da ONU e das leis nacionais, de modo a promover a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as substâncias psicoativas, para que tais atividades sejam reguladas de forma racional e respeitosa dos direitos fundamentais, para que o violento, danoso e doloroso poder punitivo seja contido, para que milhões de pessoas em todo o mundo sejam libertadas das prisões, para que a supremacia das declarações internacionais de direitos e das constituições democráticas seja resgatada, para que a liberdade seja assegurada, para que a democracia seja salvaguardada.

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